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SABOR E RESISTÊNCIA ANCESTRAL

Empreendedorismo silencioso das baianas de acarajé: do Brasil colônia à atualidade

Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil, baianas de acarajé reclamam da falta de apoio e investimento financeiro

Por Andrêzza Moura e Leilane Teixeira

07/06/2025 - 8:00 h
Na foto: Baiana fritando acarajé no quiosque de Amaralina - 24/11/1994
Na foto: Baiana fritando acarajé no quiosque de Amaralina - 24/11/1994 -

Juçara de Jesus Santos, 46 anos, faz parte da terceira geração de baianas de acarajé de uma família comandada por mulheres. Filha de Jaciara de Jesus Santos, a famosa Cira do Acarajé, morta em 4 de dezembro de 2020, aos 70, ela mantém vivo o legado da avó, dona Odete Braz de Jesus, falecida aos 42, em 1962, e da mãe, com quem aprendeu o ofício ancestral, ainda na adolescência, aos 14 anos.

Juçara Santos - filha de Cira do Acarajé
Juçara Santos - filha de Cira do Acarajé | Foto: Uendel Galter/Ag. A Tarde

Por força do destino, Cira retornou ao Orun - mundo espiritual para os praticantes das religiões de matriz africana - no dia de Iansã, Orixá dos ventos e das tempestades e dona do ori [cabeça] e dos caminhos da saudosa baiana de acarajé. É a essa divindade a quem é oferecido o akará jé, alimento trazido da África pelos escravizados e sagrado em rituais do candomblé e da umbanda. A palavra 'akará jé' vem da língua iorubá, onde 'akará' significa 'bola de fogo' - e 'jé' - 'comer' -, ou seja 'comer bola de fogo'.

"O tabuleiro era de minha avó e, aos 12 anos, quando ela faleceu, mãe tomou conta. Ela começou a vender acarajé para criar os três irmãos e, depois, para criar os filhos. Ela teve o primeiro filho aos 17, e, com isso, foi sempre trabalhando para nos criar",
conta Juçara, ao relembrar da 'luta' silenciosa de Cira para sustentar a família.

Ao todo, a baiana de acarajé teve cinco filhos biológicos e adotou mais seis. Hoje, o caçula tem 20 anos.

Cira, baiana de acarajé de Itapuã - 01/09/1995
Cira, baiana de acarajé de Itapuã - 01/09/1995 | Foto: Shirley Stolze / Ag. A Tarde

As histórias de dona Odete, de Cira e de Juçara se confundem com as de tantas outras mulheres que, desde o período colonial e, também agora, na contemporaneidade, provem seus familiares através da comercialização de alimentos em tabuleiros espalhados por ruas, esquinas e vielas de Salvador, a capital da Bahia.

"Quando a gente olha essas mulheres na rua, a gente se reporta justamente a esse momento da sociedade [período colonial], onde essas mulheres foram obrigadas a ir para a rua. É interessante dizer que a presença dessas mulheres na rua foi uma exploração, mas elas souberam se aproveitar deste momento ou ressignificar esse momento até para poder constituir fortunas", descreveu o babalorixá Vilson Caetano, professor titular da Escola de Nutrição e Gastronomia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Ele completou: "Uma das notícias que a gente tem é de que esse dinheiro juntado por essas africanas, por essas crioulas, por algumas escravizadas ou por algumas libertas, eram depositados nas chamadas juntas de alforria, tipo uma caderneta de poupança, e ali, num determinado momento, ela comprava a carta de liberdade de seus companheiros, de seus filhos e assim por diante".

Eu monto meu tabuleiro às 15h30, mas o trabalho de verdade inicia bem antes, com idas à feira, preparação da massa e dos acompanhamentos. Canto camarão, corto quiabo, faço a massa. Limpo, sujo, limpo de novo. Sou daquelas que arma e desarma a barraca todo dia. É um trabalho que não para. A rotina exige dedicação integral, mas ainda assim é difícil ser reconhecida como empreendedora. A gente faz tudo, mas ninguém vê como negócio. Só como tradição
lamenta Tatiana.
Antropólogo Vilson Caetano explica como surgiu a profissão de baianas de acarajé
Antropólogo Vilson Caetano explica como surgiu a profissão de baianas de acarajé | Foto: José Simões/Ag A TARDE

"Vindas dos terreiros de candomblé para as ruas, praças, feiras, festas de largo e orla marítima, as baianas são elementos da paisagem com suas indumentárias e adereços, verdadeiros monumentos vivos, que contribuem decisivamente na construção de um dos símbolos mais fortes e presentes da cultura afro-brasileira: a Culinária", afirma trecho da 'História das Baianas' postado no site do Museu das Baianas das Acarajé.

O texto segue: "Seus quitutes principalmente o acarajé, expressam a herança das culturas vindas de África, além do sentido religioso, é comida de Santo nos terreiros de candomblé, o bolinho de fogo ofertado puro a Iansã e Xangô, e foi através deles que muitas negras alforriadas encontraram seu sustento, fenômeno que se expandiu no período imediato após a abolição da escravidão, constituindo-se numa das primeiras profissões femininas surgidas no país".

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Pioneirismo no empreededorismo feminino negro

As baianas de acarajé são consideradas as primeiras empreendedoras do Brasil, pioneiras no empreededorismo feminino negro. São elas que, ao longo do tempo, resistentemente, têm preservado os saberes e fazeres ancestrais através da transmissão do conhecimento prático e oral de geração em geração.

Acarajé com molho de pimenta
Acarajé com molho de pimenta | Foto: Uendel Galter/Ag. A Tarde

"As primeiras notícias escritas, na cidade de Salvador, sobre a presença dessas mulheres é, justamente, final do século XVIII. É uma carta de um professor de grego, Luiz Vilhena, que lamenta a questão da organização, da saúde pública da cidade de Salvador. Ele escreve uma carta, onde diz que: 'não deixa de ser digno de reparar, que das casas mais ricas dessa cidade sai todos os dias, com seus tabuleiros a mercar, negros e negras, as coisas mais vis. Acarajé, lelê, ekó, èkuru, vatapá, mocotó, uma água suja que eles chamam de aluá' ", pormenoriza Caetano.

Nascido na vila de São Tiago de Cassino, em Portugal, Vilhena chegou à capital baiana em 1787, onde viveu até sua morte, em 1814.

"Então, na verdade, essas mulheres que nós vemos hoje, que carregam, que trazem esse ofício, vem justamente dessas mulheres [do século XVIII]. Ou por uma questão consanguínea, porque o ofício é ado de volta, de geração a geração, ou para uma coisa que eu venho chamando de memória ancestral. Porque nós temos uma memória ancestral",
completa o babalorixá, que também é antropólogo.

Dificuldade, força ancestral e legado

Quando precisou assumir o tabuleiro da mãe, em 1962, na Rua Aristídes Milton, no bairro de Itapuã, Cira contava apenas com o legado ancestral, muita força de vontade e determinação.

A sua história, uma referência de vida, foi forjarda na dificuldade e na necessidade de alimentar os que dela dependiam. E, aquele empreendimento de subsistência de outrora, hoje, é uma empresa consolidada que garante o sustento de, pelo menos, 20 famílias.

Jaciara de Jesus Santos, a famosa Cira do Acarajé - 19/02/2008
Jaciara de Jesus Santos, a famosa Cira do Acarajé - 19/02/2008 | Foto: Xando Pereira/AG A TARDE

Atualmente, quem está à frente do patrimônio construído pela famosa e premiada baiana de acarajé é Juçara. É ela quem istra o funcionamento dos quiosques que susbstituíram os antigos tabuleiros e quem mantém viva a tradição na família.

Um dos pontos permance em Itapuã - bairro cantado em versos e prosas por Vinicius de Morais -, e o outro no Largo da Mariquita, no Rio Vermelho - bairro mais boêmio de Salvador.

Juçara Santos aprendeu o ofício com a mãe, ainda na adolescência
Juçara Santos aprendeu o ofício com a mãe, ainda na adolescência | Foto: Uendel Galter/Ag. A Tarde

"Ela abriu [quiosque] aqui o Rio Vermelho, em 1999. Então, eu vim para tomar conta desse ponto. Estou aqui, mantendo, istrando a empresa pelo que ela construiu. O que era mais importante para ela, era seu nome [Cira]. Eu estou cuidando dessa parte até o momento, não sei até quando", falou com pesar, a baiana Juçara, ao informar que o legado da mãe pode acabar com ela, pois outros familiares não demonstram interesse em preservar o patrimônio.

A força de um legado: do tabuleiro ao quiosque

O sucesso do Acarajé da Cira, um dos mais tradicionais e procurados de Salvador, serve de inspiração para outras baianas que seguem caminhos semelhantes.

Assim como Cira, a baiana Eliana Ferreira também construiu sua trajetória com base no saber ancestral e de maneira geracional. Há mais de 40 anos na profissão, ela deu seus primeiros os ainda em Itapuã, influenciada pelas mulheres de sua família e baianas ao redor.

Acarajé da Eliana,  no Costa Azul
Acarajé da Eliana, no Costa Azul | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

“Minha história com o acarajé começou ainda na infância, acompanhando minha mãe no tabuleiro, desde os oito anos de idade. Minha mãe fritava o acarajé e eu ficava ajudando no tempero, no camarão, colocando os acompanhamentos. Na adolescência, aos 14 anos, queria ter minha própria renda e, então, comecei a ajudar uma baiana que vendia na praia. Quando completei 16 anos, já sabia que queria seguir os os das mais velhas, com o tabuleiro à frente e a fé no ofício. Foi uma mistura de tradição que ou de geração e se transformou em amor desde a minha infância”, contou ao Portal A TARDE.

No entanto, o ofício foi marcado por muitos desafios. Até tornar o próprio negócio sólido, com a atual estrutura fixa montada no Costa Azul, conhecida como o “Acarajé da Eliana”, a baiana chegou a vender em calçada, subir e descer ladeira com peso dos materiais, enfrentar os obstáculos ao utilizar o transporte público e lidar com os preconceitos. Mas ela lembra que uma das maiores dificuldades foi ter de criar os quatro filhos sozinha.

Eliana em seu ponto no Costa Azul
Eliana em seu ponto no Costa Azul | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

“Tinha que sair para trabalhar e não tinha com quem deixar as crianças e as levava comigo. Minha menina, com nove anos, já ficava no caixa. Trabalhei com bebê dormindo no isopor. ei muitos perrengues por falta de políticas públicas também, a exemplo do transporte público", explicou.

A baiana detalhou que, antes tinha um ponto de vendas na Pituba, então precisava fazer o transporte de ônibus, mas era, muitas vezes, barrada: "Em certas ocasiões, o motorista fechava a porta e um ageiro dizia: ‘Bota aqui no meu colo’. Era uma luta. Sem falar no preconceito contra nossa profissão, nossa raça e religião".

"Teve uma vez que o pessoal de um prédio do lado do meu ponto disse que o acarajé era sujo. Sujo pra quem? Eles não sabem o trabalho que dá preparar tudo. Nunca viram um bolinho nascer. Mas apesar de tudo isso, nunca desisti”, pontuou a vendedora.

Baiana prepara acarajé completo para cliente
Baiana prepara acarajé completo para cliente | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

No início da atuação, no ponto em que ela tinha na Pituba, chegou a ser retirada por policiais a mando de um dos comerciantes do local. “Ele achava que eu era concorrência. Mandava arrancar meu tabuleiro. Mas fui conversando, pedi pra me deixarem. No fim, consegui meu espaço. Após um tempo, mudei para o Costa Azul, onde sigo até hoje sendo bem reconhecida na região”, lembrou.

Da 'luta' ao sucesso

A profissionalização sempre foi uma meta para Eliana. Desde os 16, ela se vinculou à Associação das Baianas de Acarajé (Abam) e buscou seguir os trâmites legais do ofício. Aos 18, formalizou-se como Microempreendedora Individual (MEI), pensando sempre em alçar novos voos e ter os direitos garantidos, principalmente a aposentadoria e o auxílio-doença.

“Formalizar-se foi um o estratégico. Antes era tudo no peito. Mas aí vi que precisava do CNPJ para ter outros os, como comprar no atacado, emitir nota fiscal e ter o aos meus direitos. E tudo isso sempre esteve muito atrelado também à qualidade do serviço que eu ofereço”, contou.

O que muitos veem como “trabalho informal de baiana de acarajé” é, na verdade, uma engrenagem sólida de produção e geração de renda. Com o negócio consolidado, a baiana hoje emprega outras mulheres e lidera uma pequena cadeia produtiva que vai da compra dos ingredientes até o sorriso do cliente ao receber o acarajé. Segundo ela, tudo fruto de investimento em estrutura, equipe e atendimento.

A baiana Eliana Ferreira, Ângela, Shirley, Beatriz e Silvia.
A baiana Eliana Ferreira, Ângela, Shirley, Beatriz e Silvia. | Foto: Shirley Stolze / Ag A TARDE

“As meninas chegam na minha casa por volta das 7h da manhã e ficam até às 15h. Lá no ponto, já são outras duas que trabalham comigo. A gente abre por volta de 16h. Todo mundo fardado, bem organizado. Me preocupo muito com meus clientes, com a qualidade. Não reciclo azeite, não reaproveito massa, não uso salada mal lavada. Faço tudo com capricho. Me preocupo também com meus fornecedores, de onde vem o camarão, o feijão... É tudo bem escolhido. Estou sempre fardada, organizada. Respeito a minha profissão, mesmo que muitas vezes não tenhamos esse respeito de fora”, ressaltou.

Eliana emprega diretamente uma funcionária com carteira assinada, conta com três colaboradoras na cozinha, duas no quiosque e ainda mobiliza os próprios filhos no funcionamento do tabuleiro.

A prosperidade do seu negócio fez com que ela saísse do enquadramento de MEI e se tornasse Microempreendedor (ME) com um faturamento mensal que gira em torno dos R$12 mil.

Eliana Ferreira, mantém um ponto no bairro do Costa Azul
Eliana Ferreira, mantém um ponto no bairro do Costa Azul | Foto: Shirley Stolze / Ag A TARDE

Além do atendimento no quiosque, ela também faz eventos, ceias de fim de ano, café da manhã completo e ações sociais — doa brinquedos, sopa, ovos de Páscoa e alimentos para pessoas em situação de rua.

“Gosto de ajudar. Já ei por muita coisa, sei o que é precisar. Não sou famosa, mas me respeito. Respeito minha trajetória e exijo o respeito de fora também, mesmo que muitas vezes não me enxerguem como uma empreendedora que movimenta, sim, uma cadeia”, findou.

Resistência e resiliência nas comunidades

Se nas grandes avenidas turísticas e localidades majoritariamente de classe média alta a imagem da baiana de acarajé é símbolo da Bahia, nos bairros periféricos ela carrega ainda mais a simbologia de força, sustento, resistência e trabalho diário. A baiana Tatiane Barbosa dos Santos, 50 anos, é uma dessas forças que resiste arduamente nas periferias de Salvador.

Imagem ilustrativa da imagem Empreendedorismo silencioso das baianas de acarajé: do Brasil colônia à atualidade
| Foto: Andrezza Moura

Diferente de muitas baianas, a moradora de Campinas de Pirajá não entrou na área de maneira geracional, mas sim buscando uma forma de sustento após ser demitida de um trabalho que exercia em regime CLT [Consolidação das Leis do Trabalho].

“Eu trabalhava em uma loja de sapatos na Sete Portas [bairro]. Na frente, tinha uma baiana de acarajé. Em um certo momento, fui demitida e fiquei desempregada. Como éramos amigas, ela me incentivou a fazer um curso no Senac e disse que eu tinha 'cara de baiana de acarajé'. Fiz o curso e estou aqui até hoje. Me apaixonei pela profissão e sigo nela há cerca de 14 anos, local onde eu tiro meu sustento”, contou ao Portal A TARDE.

Tatiane começou a vender acarajé após ficar desempregada
Tatiane começou a vender acarajé após ficar desempregada | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

Tatiane se formalizou como MEI logo nos primeiros anos de atuação. A opção pela regularização, embora não elimine as dificuldades, para ela, traz melhores condições de trabalho para as baianas, profissionais que sofrem com alguns problemas de saúde recorrentes: lesões por esforço repetitivo, problemas de coluna, circulatórios e respiratórios. “A gente mexe massa todo dia, inala fumaça, carrega peso. É cesto, cooler, barraca. Mesmo morando perto, tudo isso pesa”, pontuou.

Apesar de exercerem a mesma profissão e preservarem a tradição ancestral também no uso das indumentárias [bata, saia e torço], a proprietária do “Acarajé da Taty” tem uma rotina diferente da de Eliana. A empreendedora não tem funcionário, trabalha sozinha e ainda precisa armar e desarmar todos os dias o tabuleiro.

Eu monto meu tabuleiro às 15h30, mas o trabalho de verdade inicia bem antes, com idas à feira, preparação da massa e dos acompanhamentos. Canto camarão, corto quiabo, faço a massa. Limpo, sujo, limpo de novo. Sou daquelas que arma e desarma a barraca todo dia. É um trabalho que não para. A rotina exige dedicação integral, mas ainda assim é difícil ser reconhecida como empreendedora. A gente faz tudo, mas ninguém vê como negócio. Só como tradição
lamenta Tatiana.

Ausência de políticas públicas

A ausência de estrutura física fixa impacta diretamente a renda. Além das vendas na rua, Tatiane diversifica a renda com entregas para condomínios no bairro e participa de eventos.

Em meses bons, com eventos, chega a faturar até R$ 6 mil. Em meses fracos, tem uma renda que gira em torno de dois salários mínimos.

Antes de montar o tabuleiro sozinha, Tatiane prepara tudo o que será vendido  em seu tabuleiro
Antes de montar o tabuleiro sozinha, Tatiane prepara tudo o que será vendido em seu tabuleiro | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

Enquanto empreende silenciosamente com criatividade e esforço, ela sente na pele a ausência de políticas públicas específicas para o seu tipo de negócio. “A gente precisa de estrutura, de ponto fixo, de apoio real. Não é só aparecer no 2 de Julho ou no Carnaval. A baiana está todo dia na luta”, reforçou.

Apesar dos desafios físicos, da insegurança e da falta de ações governamentais, Tati nunca pensou em desistir. “Amo ser baiana de acarajé. Amo ouvir que está gostoso, ver a alegria das pessoas comendo minha comida. Só precisamos receber o reconhecimento que merecemos dos órgão públicos", concluiu ela.

Acarajé sendo frito no azeite de dendê
Acarajé sendo frito no azeite de dendê | Foto: Uendel Galter/Ag. A Tarde

A Bahia possui mais de 620 mil mulheres à frente de seus próprios negócios, representando 34% dos empreendedores do estado, segundo dados do Sebrae.

O setor de serviços é o mais representado pelas mulheres, seguido do comércio e da área de alimentação. De acordo com a instituição, não há dados compilados com o recorte de ‘baianas de acarajé’.

Invisibilidade e empreendedorismo

Rita Santos, presidente da ABAM, fala da falta de apoio financeiro para a categoria
Rita Santos, presidente da ABAM, fala da falta de apoio financeiro para a categoria | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

Conforme estimativa da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau e Receptivo da Bahia (ABAM), em todo o estado, existem cerca de seis mil profissionais, sendo mais de 3,5 mil somente em Salvador.

Segundo a presidente da instituição, Rita Santos, a falta de políticas públicas é um dos principais fatores que contribui para a invisibilidade das baianas de acarajé como empreendedoras.

“Essas profissionais foram as primeiras empreendedoras deste país, começando ainda lá atrás, com as mulheres escravizadas. De lá para cá, as coisas foram mudando, crescendo, mas não alcançou ainda o cenário da formalização que deveria ter", afirmou.

A presidente declarou: "Embora sustentem famílias inteiras, movimentem a economia local e mantenham viva uma tradição ancestral, as baianas de acarajé ainda são, em grande parte, invisibilizadas como empreendedoras".

"As baianas ainda são enquadradas como “vendedoras de alimentos”, mas não deveriam, porque já existe uma lei que nos reconhece como profissão. O problema é que querem fazer uma separação entre o aspecto comercial e o cultural, mas com nós, baiana de acarajé, isso não pode existir. Comércio e cultura devem andar lado a lado. Exaltamos a cultura, mas também somos negócio, empresárias”, disse.

Rita Santos - ABAM
Rita Santos - ABAM | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

O ofício das baianas de acarajé foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil em 2005, ao ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Em 2012, elas receberam também o título de Patrimônio Imaterial da Bahia, concedido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC).

Já em 2017, a profissão de baiana de acarajé foi oficialmente reconhecida pelo Ministério do Trabalho e incluída na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), o que permitiu que as baianas tivessem uma identificação profissional mais precisa.

Rita revelou que a conquista foi uma reivindicação antiga da ABAM e que, há décadas, lutava pelo reconhecimento. A inclusão no COB deu às empreendedoras alguns benefícios:

  • tirar carteira de trabalho como baianas de acarajé;
  • se cadastrar como microempreendedoras individuais;
  • obter créditos em bancos e cooperativas;
  • ar direitos trabalhistas.

No entanto, apesar desses avanços, Rita diz que a teoria ainda não anda alinhada com a prática.

“Não temos política pública nenhuma. Somos patrimônio cultural do estado da Bahia. Qual a campanha que o Estado tem em relação a nós? Quando vou visitar municípios, os prefeitos e secretários de cultura dizem: 'Isso é coisa de Salvador'. Como se a Bahia fosse dividida. Claro que não tem baiana em todos os 417 municípios, mas, mais da metade tem. Só que os gestores não investem porque não há orientação do estado”, expressou a presidente.

Falta de apoio e investimento

Apesar da importância econômica e cultural do ofício, baianas de acarajé ainda enfrentam também, conforme a presidente da ABAM, dificuldades para ar linhas de crédito e programas de apoio ao microempreendedorismo.

De acordo com Rita, as iniciativas do poder público, embora existam no papel, muitas vezes esbarram na burocracia e na falta de adaptação à realidade dessas trabalhadoras.

Falta de reconhecimento incomoda Rita Santos, presidente da ABAM
Falta de reconhecimento incomoda Rita Santos, presidente da ABAM | Foto: Rafael Muller/ Ag. A TARDE

“O investimento praticamente não existe. Eu mesma fui chamada para um seminário de cooperativas de microcrédito, mas cancelaram. É muito difícil para uma baiana conseguir empréstimos para se equipar. A prefeitura até criou um programa, eu fui até o lançamento, mas nem eu consegui pegar o empréstimo. O governo do estado também tem projetos, mas são difíceis de ar. O Banco do Nordeste me chamou, participei de várias reuniões, e no fim acabei sendo a responsável por um empréstimo que outras três baianas precisavam. Nem usei o dinheiro, mas paguei os juros, porque elas não tinham condições de fazer o cadastro sozinhas. Isso não é justo”, expôs.

Ime com o MEI

Dados do Sebrae revelam que a Bahia tem mais de 1,1 milhão de pequenos negócios, sendo 811 mil Microempreendedores Individuais (MEI) e 344 mil micro e pequenas empresas, gerando mais da metade dos empregos formais no estado.

Quando o assunto é formalização e legalização da atividade, o "Acarajé da Eliana", "Cira do Acarajé" e o "Acarajé Taty" fazem parte de uma exceção. Infelizmente, segundo informações da ABAM, a maioria das baianas de Acarajé na Bahia ainda vive na informalidade.

Baianas de acarajé
Baianas de acarajé | Foto: Cedoc A TARDE

A presidente da instituição revelou ainda a existência de um ime que contribui com a informalidade: a perda do benefício Bolsa Família.

“Aqui na Bahia existe um problema maior com a informalidade do que em outros estados. Fora da Bahia, a maioria das baianas é MEI, tem CNPJ. Só que aqui, 90% delas recebem Bolsa Família. E o que acontece? Muitas fizeram MEI, e no mês seguinte o benefício foi cortado. Então, hoje, quando você fala de MEI com as baianas da Bahia, muitas desaparecem. Não querem nem ouvir para não perderem o Bolsa Família”, explicou.

Na tentativa de sanar a problemática, Rita informou ter levado a questão ao Governo Federal: "Eu tenho MEI desde 2009. Me aposentei com MEI. Com 15 anos de contribuição, dá pra se aposentar. Eu tenho CNPJ, emito nota fiscal, tenho tudo certinho. Mas o medo de perder o benefício faz com que a maioria aqui não se formalize. E com isso, é pior para elas, porque nossa profissão exige muito do nosso físico. Então, além da aposentadoria, é fundamental ter MEI para que elas tenham o ao auxílio doença, caso precisem se afastar".

"Já estou em trâmite com o governo para resolver isso. Eles dizem que o Bolsa Família só é cortado após um prazo de dois anos aproximado, mas não é isso que está acontecendo. Assim que eles decidem se formalizar, o benefício já é cortado."

Embora sejam parecidos, o Microempreendedor Individual (MEI) e o Microempreendedor (ME) têm características distintas.

Veja a seguir os principais pontos que os diferenciam, segundo o Sebrae:

  1. A categoria MEI é destinada a empreendedores que faturam até R$ 81 mil por ano, oferecendo benefícios como simplificação tributária e o a crédito e pode ter apenas 1 funcionário.
  2. Enquanto a ME é voltada para negócios com faturamento faturamento anual de até R$360 mil, permitindo uma estrutura mais maior, podendo ter vários funcionários, de acordo com o setor, e permite a inclusão de sócios.

Quando empreender é sobreviver

Joseane Sacramento, 51 anos, é um exemplo de baiana que, por medo de perder o auxílio do governo, preferiu não se formalizar. Ela lembra, com carinho, que tudo o que sabe sobre a profissão, aprendeu com uma baiana tradicional, que a acolheu em Salvador, quando chegou de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, ainda muito jovem. Já são mais de 30 anos dedicados ao ofício ancestral.

Joseane não tem mais ponto de acarajé e trabalha por encomendas
Joseane não tem mais ponto de acarajé e trabalha por encomendas | Foto: Denisse Salazar/AG.A TARDE

“Eu nunca formalizei meu negócio por receio de perder o Bolsa Família.Eu achava que se me cadastrasse como MEI, perderia o benefício. Como sempre vivi no limite, preferi não arriscar e viver com a renda do benefício e das vendas”, disse a filha de Oxum.

Embora casada, há 32 anos, Joseane, que é mãe de dois filhos, precisou dar conta de tudo sozinha, já que o marido trabalha viajando. Foi com a renda do tabuleiro, que criou as duas crianças. Um deles faleceu aos 21 anos, e hoje ela vive com o esposo, o filho mais velho, a nora e a neta.

“Criei meus filhos com acarajé. Eles ficavam comigo no ponto quando eram pequenos. Quando cresceram, começaram a me ajudar a carregar as coisas. Tinha dia que eu trabalhava só pra comprar mercadoria para o dia seguinte. Sempre paguei aluguel, luz, água. Não foi fácil”, relembrou a baiana, sobre as dificuldades.

Reiventar para seguir

Durante anos, Joseane manteve pontos fixos na Boca do Rio, bairro onde mora. Mas tudo mudou com a pandemia do Covid-19, em 2020: “Trabalhava em frente a um açougue. Com o isolamento, fiquei sem poder sair, e quando tudo reabriu, o dono tinha mudado e não permitiu mais que eu ficasse lá. Tentei usar a garagem de casa, mas a rua era deserta. Não dava movimento”.

Joseane guarda em um canto do quarto o tabuleiro e o material de trabalho
Joseane guarda em um canto do quarto o tabuleiro e o material de trabalho | Foto: Denisse Salazar/AG.A TARDE

Desde então, Joseane ou a trabalhar por encomendas, atendendo festas e carurus. “Tenho tudo: tabuleiro, roupa, flanelas... só não tenho o ponto. Mas ao longo da trajetória, adquiri clientes fieis, que seguem fazendo pedidos aos finais de semana. Também faço presença em festas e também me contratam para ir fazer no local, o que é até melhor, porque o pagamento é maior”, avaliou.

Para ajudar no sustento da família, além de vender acarajé por encomenda, Joseane canta em eventos
Para ajudar no sustento da família, além de vender acarajé por encomenda, Joseane canta em eventos | Foto: Denisse Salazar/AG.A TARDE

Atualmente, para compor a renda familiar, ela também atua como cantora e compositora e, há dois anos, ou a se apresentar em bares e pequenos eventos. “Tenho música gravada nas plataformas digitais. É minha outra paixão além do tabuleiro”, finalizou.

Celebração ancestral

Em meio às dificuldades e, enquanto buscam por reconhecimento, as baianas de acarajé - Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil -, transitam entre o ado e o presente como guardiãs dos saberes e fazeres ancentrais para as gerações futuras. E, ao mesmo tempo em que resistem fritando no azeite de dendê quente os bolinhos de feijão, elas se celebram e honram a história, o legado e a existência dos que vieram antes abrindo caminhos.

"Essas mulheres evidenciam, a realidade desse importante oficio não só na Bahia mas, também, em todas as capitais brasileiras, através da luta cotidiana para a manutenção de suas famílias, promovendo a vanguarda no que se diz respeito aos direitos feministas e divulgando para o mundo a cultura afro-brasileira", esclareceu trecho da 'História das Baianas' postado no site do Museu das Baianas de Acarajé.

  • Bolinho feito com massa feita com feijão fradinho moído e cebola e frita no azeite de dendê
    Bolinho feito com massa feita com feijão fradinho moído e cebola e frita no azeite de dendê |
  • Bebida fermentada feita geralmente com milho ou abacaxi e adoçada com rapadura ou açúcar mascavo
    Bebida fermentada feita geralmente com milho ou abacaxi e adoçada com rapadura ou açúcar mascavo |
  • Pai de santo em religiões de matriz africana
    Pai de santo em religiões de matriz africana |
  • Preparo feito com feijão, assim como o acarajé, envolto em folhas de bananeira e cozido no vapor
    Preparo feito com feijão, assim como o acarajé, envolto em folhas de bananeira e cozido no vapor |
  • Uma das principais divindades no panteão africano e afro-brasileiro. Também conhecida como Oyá, a Orixá é a senhora dos ventos e tempestades. No sincretismo religioso, ela é Santa Bárbara
    Uma das principais divindades no panteão africano e afro-brasileiro. Também conhecida como Oyá, a Orixá é a senhora dos ventos e tempestades. No sincretismo religioso, ela é Santa Bárbara |
  • Preparo feito com milho verde, leite de coco, canela e cravo-da-índia
    Preparo feito com milho verde, leite de coco, canela e cravo-da-índia |
  • Preparo feito com a pata do boi e temperos diversos
    Preparo feito com a pata do boi e temperos diversos |
  • Cabeça. Ponto de conexão entre o ser humano e os Orixás
    Cabeça. Ponto de conexão entre o ser humano e os Orixás |
  • Divindades cultuadas nas religiões de matriz africana, candomblé e umbanda
    Divindades cultuadas nas religiões de matriz africana, candomblé e umbanda |
  • Mundo espiritual para vão os mortos nas religiões de matriz africana
    Mundo espiritual para vão os mortos nas religiões de matriz africana |
  • Preparo feito com pão amanhecido, camarão seco, cebola, castanha de caju torrada, amendoim torado, gengibre, leite de coco e azeite de dendê.
    Preparo feito com pão amanhecido, camarão seco, cebola, castanha de caju torrada, amendoim torado, gengibre, leite de coco e azeite de dendê. |

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