SALVADOR
‘Ancestralidade ainda pulsa nas ruas, nas festas e na resistência’ 5b5d6m
Confira entrevista com o criador do documentário “Pernambués, Quilombo Urbano” 2q6173
Por Joana Lopo

Entre as vielas, becos e ladeiras de Pernambués, pulsa uma história de resistência que ecoa os tambores ancestrais de um quilombo urbano ainda vivo. Foi para dar visibilidade a essa memória coletiva que o cineasta e pesquisador Lúcio Lima concebeu o documentário “Pernambués, Quilombo Urbano”, lançado em 2020 com apoio do edital Arte Todo Dia, da Fundação Gregório de Mattos. Filho da vizinha Saramandaia, Lima se mudou para Pernambués com o objetivo de narrar o território de dentro para fora, de dentro para dentro — e não como espectador, mas como parte integrante da narrativa.
O filme, sensível e potente, revela um bairro majoritariamente negro, moldado por práticas comunitárias, lideranças espirituais e culturais, heranças do Quilombo do Cabula e manifestações populares como o Terno de Reis Rosa Menina, verdadeiro símbolo de resistência e continuidade. Sem imagens de arquivo, mas com um acervo vivo de memórias, o documentário constrói uma Salvador negra e periférica, onde o sagrado e o cotidiano se entrelaçam.
Nesta entrevista ao A TARDE, Lima conta que sua produção acende o alerta para os impactos da urbanização acelerada e propõe uma reflexão urgente: como crescer sem apagar as raízes que sustentam a identidade de um povo?
Confira a entrevista 3y5s4h
1. O que motivou a realização do documentário “Pernambués, Quilombo Urbano”?
Lúcio Lima - O documentário “Pernambués, Quilombo Urbano” teve produção em 2019 e foi lançado em 2020. O projeto foi contemplado no edital Arte Todo Dia, da Fundação Gregório de Mattos e prefeitura municipal de Salvador. A principal motivação para a realização veio da minha vivência como morador de Saramandaia, bairro vizinho a Pernambués.
Durante minha adolescência existiam barreiras territoriais que dificultavam a interação entre os dois bairros, e isso sempre me provocou reflexões. Ao perceber que essas divisões já não faziam tanto sentido em 2019, decidi me aproximar mais da comunidade. Conheci muitos pesquisadores, jovens, artistas e moradores de Pernambués que me inspiraram. Além disso, o dado do IBGE que identifica Pernambués como o bairro mais negro de Salvador me motivou a investigar e registrar essa história. A origem quilombola da região, vinculada ao antigo Quilombo do Cabula, também foi um motor fundamental. Me mudei para o bairro para vivenciar o cotidiano e construir o documentário de dentro do bairro, valorizando essa memória coletiva e o território.
2. De que forma a origem quilombola de Pernambués é construída no documentário? Como essa herança cultural está presente na vida dos moradores?
LL - O documentário aborda a origem quilombola de Pernambués destacando suas raízes ligadas ao antigo Quilombo do Cabula. A herança cultural está presente no cotidiano através das práticas comunitárias, das tradições orais, das manifestações culturais e da presença de lideranças locais que mantêm viva a memória do território. A figura da professora doutora sca de Paula foi fundamental na construção dessa narrativa, ajudando a evidenciar como a ancestralidade ainda pulsa nas ruas, nas festas e na resistência dos moradores.
3. Quais foram os maiores desafios durante as filmagens no bairro? Houve alguma dificuldade em ar determinadas áreas ou em obter depoimentos?
LL - Os desafios foram muitos. Diferentemente do documentário anterior sobre Saramandaia (Retalhos – a memória viva de Saramandaia), não havia material de arquivo disponível — como as imagens das décadas de 1980 e 1990 produzidas por meu pai. Além disso, embora eu conhecesse pessoas do bairro, eu ainda estava chegando na comunidade. Pernambués é um bairro muito extenso, maior do que Saramandaia, o que exigiu que eu delimitasse a narrativa a algumas localidades. Apesar dessas dificuldades, consegui construir um documentário potente, com histórias reais e sensíveis de moradores que ajudam a moldar e manter viva a identidade do bairro.
4. Como o documentário retrata a transformação urbana de Pernambués ao longo dos anos?
LL - A transformação urbana é retratada a partir das memórias dos moradores mais antigos e do contraste entre o ado e o presente. O filme mostra como a urbanização avançou, modificando as dinâmicas de convivência, os espaços físicos e até mesmo as relações sociais do bairro. A expansão desordenada, a perda de áreas verdes e o crescimento de construções foram temas que surgiram naturalmente nos depoimentos, revelando como essas mudanças impactaram a identidade coletiva da comunidade.
5. De que forma a cultura local, como o Terno de Reis Rosa Menina, é apresentada no filme? Quais aspectos da identidade de Pernambués são destacados?
LL - O documentário enfatiza fortemente a identidade negra e quilombola de Pernambués, destacando a diversidade étnica e cultural como um dos traços mais marcantes do bairro. Ele busca valorizar a oralidade, as tradições populares, a religiosidade de matriz africana, a força feminina e o protagonismo comunitário. Ao mostrar a pluralidade de vozes e experiências, o filme constrói uma narrativa que revela a potência cultural da periferia como lugar de resistência e produção de saberes.
O Terno de Reis Rosa Menina é uma das manifestações mais emblemáticas da cultura popular do bairro. A figura e o depoimento de Dona Isabel, filha da matriarca do grupo, são centrais para mostrar a continuidade dessa tradição. O documentário revela como essa prática mobiliza a comunidade e reforça laços identitários. Mais do que uma celebração religiosa ou cultural, o Terno de Reis é retratado como símbolo de resistência e memória ancestral, reafirmando o papel das mulheres e das famílias na preservação da cultura de Pernambués.
Mostramos também as manifestações religiosas como os terreiros, as celebrações afro-brasileiras, e figuras como o Pai Ubiratã — liderança importante que representa a força espiritual e cultural do bairro. Essas manifestações são apresentadas porque são pilares da formação identitária de Pernambués, conectando o presente à ancestralidade africana e quilombola da região. Ao dar voz a essas práticas e seus representantes, o documentário busca reafirmar a riqueza cultural do bairro e seu papel na construção da Salvador negra e periférica.
As iniciativas comunitárias aparecem no documentário como verdadeiros motores de transformação social. Também foram destacados projetos de base, atividades educativas e culturais organizadas por moradores, movimentos locais e lideranças que atuam na resistência cotidiana. Essas ações demonstram a força da coletividade no bairro e como, mesmo diante de adversidades, a comunidade se articula para promover o à cultura, educação e direitos.
6. Como foi a recepção do documentário pelos próprios moradores de Pernambués? Houve algum retorno ou significativo da comunidade local? Tem outros projetos para a região? Quais?
LL - A recepção foi extremamente positiva. A comunidade apoiou, aprovou e divulgou o filme. Durante o lançamento virtual, no auge da pandemia, o documentário alcançou quase cinco mil visualizações no canal da Fundação Gregório de Matos apenas no dia do lançamento. Professores indicaram o filme como material didático em escolas, fortalecendo seu uso pedagógico.
Além disso, o documentário foi premiado em festivais nacionais, como o Festival de Cinema dos Sertões (Piauí), recebendo prêmios de Melhor montagem e Melhor Roteiro. A partir desse trabalho, outros projetos foram desenvolvidos no território, como a continuidade das pesquisas para um novo filme sobre o Quilombo do Cabula, aprofundando ainda mais a relação entre cultura, memória e identidade. É o meu primeiro filme de ficção que está em fase final de montagem – Mundinho.
7. Após o documentário, como vê o futuro de Pernambués em relação ao crescimento vertical e surgimento de novos empreendimentos e polos empresariais? Acha que podem comprometer a cultura local?
LL - O crescimento vertical e a chegada de novos empreendimentos representam um risco real para a preservação da cultura local, principalmente se não houver políticas públicas e articulação comunitária para proteger o patrimônio imaterial. A força da tradição oral, das manifestações culturais e da organização popular são ferramentas de resistência poderosas. O que é necessário é um esforço coletivo para garantir que o desenvolvimento urbano aconteça de forma equilibrada e respeitosa com a história e a identidade do bairro.
Compartilhe essa notícia com seus amigos 476za
Siga nossas redes