Conheça o museu temático que preserva a herança da enfermagem na Bahia 6i3c2k
Acervo em casarão no Pelourinho conta a história das primeiras enfermeiras negras e a origem da função do cuidar 3q5517

Em tempos de guerras, epidemias e calamidades públicas, as profissões que lidam com o cuidado dos outros são as mais demandadas. Com a enfermagem é assim. ada a crise, nem sempre quem atua nessa área recebe a devida valorização. Em Salvador, um casarão pintado de amarelo vivo, na Rua Maciel de Cima, número 5, no Pelourinho, abriga um espaço que busca valorizar as pessoas que dedicam a vida a zelar pela saúde dos semelhantes.
Completando 15 anos de criação agora em 2025, o Museu Nacional da Enfermagem possui um acervo que conta muitas histórias de cuidado. Uma delas começou em tempos de conflito, no distante ano de 1865, quando a baiana de Cachoeira, Anna Nery, voluntariou-se para atender aos feridos na Guerra do Paraguai. Mas, o espaço não abriga só o legado da pioneira da enfermagem no Brasil. No museu, estão preservadas também as heranças de outras heroínas.

O MuNean foi inaugurado em 20 de maio de 2010. Nessa data, mas em 1880, Anna Nery morreu, aos 66 anos. Os restos mortais da personagem, que é considerada uma das heroínas nacionais e chamada de “Mãe dos Brasileiros” pelo Exército, repousam no Memorial Anna Nery, em Cachoeira, no recôncavo baiano, na mesma casa onde ela nasceu, no primeiro quarto do século XIX.
A TARDE anunciou em suas páginas a criação do MuNean em 2010, nas edições do dia 16 e 19 de maio daquele ano. Na publicação do dia 16, na página Ciência & Vida, o jornal explicou: “O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) inaugura, na quinta-feira (20), o Museu Nacional de Enfermagem Anna Nery (MuNean). Instalado no Pelourinho, o museu resgata a história da profissão e de profissionais da área e mostra ao visitante o futuro da enfermagem”.

Já no texto do dia 19, véspera da inauguração, o MuNean foi anunciado como um novo equipamento cultural da cidade, no Caderno 2+. “O projeto do MuNean, instalado numa edificação do século XIX concedida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é coordenado por uma equipe multidisciplinar”, destaca a nota.
Thierre Oliveira, museólogo responsável pelo acervo do MuNean, explica que a partir de 2017, o local ou a ser o braço cultural do Cofen. O foco do museu é na história da enfermagem no Brasil e na Bahia, mas também há espaço para falar sobre a origem mundial da profissão na era moderna a partir da figura de Florence Nightingale.
Nas edições históricas de A TARDE, Anna Nery e Florence Nightingale aparecem juntas sempre que se fala em enfermagem.
Na publicação de 14 de maio de 1940, o jornal divulgou a íntegra do discurso de Pedro Ferreira, então secretário geral da filial baiana da Cruz Vermelha Brasileira. Na sua fala, o secretário relembrou a importância das duas personagens históricas. Sobre Anna Nery, especificamente, contou o episódio da ida da baiana até o presidente da província, em 8 de Agosto de 1865, para pedir a autorização que lhe permitiu servir como voluntária na Guerra do Paraguai.
Enfermeiras negras 664e23
O MuNean inaugurou desde o dia 07 de maio uma exposição em homenagem a Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi, cujo centenário vem sendo lembrado ao longo do ano com vasta programação na cidade.

Batizada de “Maria Stella do Cuidar”, a mostra permanece recebendo visitantes e relembra que a ancestral ialorixá do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, escritora e colunista de A TARDE durante anos, era também enfermeira de formação.
“Mãe Stella, para quem não sabe, foi enfermeira durante 30 anos de sua vida. Depois desses 30 anos como enfermeira, ela seguiu como iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá”, lembra o museólogo Thierre.
O responsável pelo acervo do MuNean conta que o acervo também abriga importantes “momentos históricos, políticos e sociais do Brasil”. Um desses momentos que precisam sair da invisibilidade a qual foi relegado por décadas é a história social da enfermagem afrodescendente.
“Aqui no museu, as pessoas conseguem entender como, por exemplo, nas primeiras escolas de enfermagem do Brasil, as mulheres negras eram proibidas de ter o a esse ensino profissional. Na criação das primeiras escolas de enfermagem eram oferecidas [vagas] apenas às mulheres brancas, tidas como cultas, as ditas enfermeiras padrão. No acervo, nós conseguimos ver as primeiras estudantes pretas da enfermagem nacional”, enfatiza.
O MuNean, lembra Thierre, funciona de segunda a sábado, com entrada gratuita. Além da história das enfermeiras negras, de Mãe Stella, de Anna Nery e de Florence Nightingale dando um panorama da enfermagem no mundo, o espaço abriga ainda uma sala para cursos voltada para os estudantes da área.
Oferece aos visitantes leigos também uma vasta coleção de instrumentos usados no atendimento aos doentes ao longo do tempo e de indumentárias que contam a história da evolução dos uniformes da profissão. “Temos também as histórias da evolução do cuidado e da enfermagem pré-profissional ao longo do tempo”, enumera Thierre.
Voluntária baiana 6m553v
Outra edição de A TARDE, essa de 20 de maio de 1980, traz um artigo de página inteira do jornalista e professor Adroaldo Ribeiro Costa, criador do programa educativo infantil Hora da Criança. Na abertura do texto sobre Anna Nery, Adroaldo começa citando a coincidência do fato de Florence Nightingale ter nascido em maio de 1820 e de Anna Nery ter morrido também em maio, mas de 1880.
Ao longo do artigo, ele pinça fatos históricos sobre a enfermeira cachoeirana, lembrando ainda que, por ser uma mulher do século XIX, antes de ir para a guerra, Anna Nery vivia conforme as regras sociais e de gênero da sua época:
“Ana Nery, nascida Ana Justina Ferreira, na Viia da Cachoeira do Paraguaçu, até os 50 anos de idade vivera uma existência que não se diferenciava da de todas as mulheres de sua época e de sua condição social. Casara-se com o capitão-de-fragata Isidoro António Nery, que faleceu a bordo do brigue "Três de Maio", no Maranhão, e do qual teve três filhos: Isidoro António, António Pedro e Justiniano”, explica Adroaldo.
A história registra que a baiana decidiu pedir autorização para ir à guerra depois que os três filhos foram convocados para lutar no Paraguai. Ela já estava viúva e quis ficar perto deles, daí ter feito um curso de cuidados básicos com as freiras da ordem de São Vicente de Paula e se engajado nas fileiras de enfermeiras que socorreram os feridos no conflito. Uma característica interessante da cachoeirana é que ela socorria todos os feridos, fossem do exército brasileiro ou do paraguaio. Ela também teria aberto hospitais de campanha em cidades da América Latina, inclusive em Assunção, a capital do Paraguai,
“A partir do momento em que Ana Nery se viu diante da realidade da guerra, seus horizontes, em vez de contraírem-se com os horrores presenciados e antes mal imaginados, alargaram-se, por força da consciência, logo adquirida, de que muito mais ampla e profunda era a missão a que se propa”, acrescenta Adroaldo no artigo.
De volta ao Brasil, Ana Nery foi recebida como heroína e ganhou do imperador D. Pedro II medalhas de campanha e uma pensão. Para preservar o legado da personagem, em 2022, foi inaugurado em Cachoeira o Memorial Anna Nery. Funcionando de terça à sábado, também com entrada gratuita, o espaço abriga a urna funerária com os restos mortais da heroína de guerra e objetos pessoais, documentos e fotografias.

“Qual é o nosso objetivo aqui, além de salvaguardar a memória dessa ilustre filha do país? É valorizar a imagem de Anna Nery, resgatar a sua identidade, a sua história, impulsionar a economia local e, mais do que tudo, valorizar a história de nosso povo, porque essa mulher merece sim ter esse reconhecimento, esse espaço que eleva ainda mais o seu nome, de sua família e da cidade histórica, heroica e monumento nacional que é Cachoeira”, afirma o poeta Quirino, coordenador interino do memorial.
Dianayra Silva, que é auxiliar no atendimento aos visitantes, convoca as pessoas a vencerem os 110 quilômetros que separam Salvador de Cachoeira para prestigiarem o espaço e o legado de Anna Nery: “Ela tem esse grande legado por ser patrona da enfermagem brasileira e por ser uma mulher guerreira e forte”, opina.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE